por Deisiane Barbosa
Meu avô talvez
tenha sido o único a dar trelas para as minhas bobagens. Era o único que
partilhava com naturalidade das minhas observações de miudezas inúteis, que
entendia o meu apreço por objetos antigos e não criticava a pintura dos meus móveis
em tom Frida Kahlo. Há muitas histórias que eu poderia contar acerca de mim e
meu avô. E será que tais memórias não são mais dele que minhas? Diria talvez
que, de certo modo são nossas, tramaram-se por uma convivência que para a minha felicidade existiu.
Vovô me
convidava a sentar à mesa com ele na hora do almoço e comprava briga com quem
tentasse me reprimir pelos meus cabelos soltos e molhados e o meu vestido novo
em pleno meado de semana. Dava-me uma liberdade que não passava de um mimo sutil
e saudável – não vejo hoje em minha personalidade sinais de estrago pelos
afagos de meu avô, que para muitos poderia significar dengos prejudiciais. Talvez
ele entendesse a importância para mim da pequena vaidade de ter solto o cabelo
volumoso e de ter o vestido novo, violado num “indigno dia de semana”. Talvez
meu avô, por mais antigo que fosse, era despido dos preconceitos mais tolos sem
nem mesmo pressentir tal proeza – embora nutrisse alguns outros, os quais nunca
deixei de perdoar, pois afinal, bem no fundo eu imaginava que ele aceitasse e
respeitasse determinadas coisas.
Na venda de
vovô eu sempre tinha vez. Percorria a prateleira de doces com a pontaria do meu
dedo fino até que ele acertasse a minha predileção e atendesse ao meu humilde
pedido de um docinho só. Às vezes entrávamos naquele jogo em que ele percorria
de uma em uma as vasilhas e eu ia respondendo com nãos até que ele chegasse ao doce
que eu queria.
Ainda criança,
não somos inteiramente conscientes do valor das coisas, mas entender nem sempre
é o importante de tudo – como já disse uma escritora que muito aprecio –, viver
é que é acima de tudo o mais valoroso. Na infância vivemos, alvoroçados, sem nem
nos dar conta da dimensão das coisas; à medida que crescemos, vamos ganhando a
capacidade de enxergá-las com os olhos precavidos para as eventuais brevidades,
ávidos em querer guardar os momentos, registrar a beleza efêmera das coisas que
amamos.
Eu já tinha um
pouco dessa malícia quando meu avô fez a sua segunda cirurgia na próstata. Retornando
vagarosamente às suas atividades cotidianas na roça, precisava ainda de ajuda nas
ações que exigiam maiores esforços. Foi então que eu fui incumbida de uma
tarefa: levar o carro de mão com a comida dos bois até o curral.
Sentava-se debaixo do pé de cacau e durante boa parte da tarde, olhando a estrada, pensando na vida, conversando e saudando um ou outro que por ali passasse, meu avô empunhava o facão cortando toda espécie de suprimento aos animais: mandioca, jaca, carambola e outros frutos da roça. A tardezinha vinha descendo e então era a hora: ele me chamava e eu largava o que estivesse fazendo. Ele pegava sua pá, eu pegava o carro de mão e os dois cachorros seguiam juntos (Jack e Tabuada). Descíamos o caminho reto, passando pela lateral da casa, pelo galinheiro, pelas mangueiras e as enormes jaqueiras e avistávamos o antigo curral. Até os cachorros adoravam aquela aventura e, muito serelepes, corriam na frente se embrenhando nos matos, avisando aos bois que tinha novidade chegando. Achava a maior graça naquilo e como já tinha a malícia do valor daqueles momentos tratava de guardar muito bem acolhidos e, sobretudo, vivê-los – que é a melhor maneira de guardar bem guardado.
Sentava-se debaixo do pé de cacau e durante boa parte da tarde, olhando a estrada, pensando na vida, conversando e saudando um ou outro que por ali passasse, meu avô empunhava o facão cortando toda espécie de suprimento aos animais: mandioca, jaca, carambola e outros frutos da roça. A tardezinha vinha descendo e então era a hora: ele me chamava e eu largava o que estivesse fazendo. Ele pegava sua pá, eu pegava o carro de mão e os dois cachorros seguiam juntos (Jack e Tabuada). Descíamos o caminho reto, passando pela lateral da casa, pelo galinheiro, pelas mangueiras e as enormes jaqueiras e avistávamos o antigo curral. Até os cachorros adoravam aquela aventura e, muito serelepes, corriam na frente se embrenhando nos matos, avisando aos bois que tinha novidade chegando. Achava a maior graça naquilo e como já tinha a malícia do valor daqueles momentos tratava de guardar muito bem acolhidos e, sobretudo, vivê-los – que é a melhor maneira de guardar bem guardado.
Ele abria a
porteira de estacas atravessadas na horizontal e eu passava com o carro de mão,
estacionando-o perto dos cochos. Depois corria para fechar a porteira do pasto pros
bois não entrarem antes da hora. E dali em diante a tarefa era dele novamente. Com
a pá ia distribuindo os frutos e um pouco de mistura de ração. Com seu chapéu,
sua camisa às vezes manchada, sua calça comprida quase sempre rasgada na barra e com
toda aquela simplicidade do mundo, meu avô ia cumprindo sua tarefa muda e me
ensinando naqueles minutos de silêncio coisas que nem ele nem eu mensurávamos
ao certo.
Eu olhava
aquilo tudo: os cachorros correndo no pasto, meu avô zelando pelo seu pequeno
rebanho, o curral antigo, cheio de esterco pelo chão, eu sentido a nobreza
daquela missão ao qual eu fora incumbida... quanto tempo mesmo duraria tudo
aquilo? Quantas vezes mais se repetiria aquele ritual cotidiano?
Vez ou outra
eu puxava conversa com meu avô, mas sentia em silêncio o quanto aquilo tudo me
tomava, porém não conseguiria demonstrar o quão valioso era para mim. Ouvia-se
o atrito da pá no latão do carro de mão, os cachorros latindo, ou farejando o
esterco, ou bebendo água no tanque dos bois. O que será que meu avô pensava? Será
que estava tão embebido quanto eu naquele silencioso contentamento? Será que
também não saberia expressar a importância daquilo tudo, embora a pressentisse?
Terminada a
distribuição do suprimento, ele chamava os bois de um jeito engraçado. Batia a
pá no carro de mão e como se aqueles animais fossem seus velhos camaradas,
anunciava:
– Ôoo ôoo,
venham comer, ó! Tem coisa boa pra vocês aqui!
Já fora do
curral, esperando na porteira, eu sorria do humor roceiro do meu avô. Os bois,
como quem entendendo o recado, vinham na maior carreira e eu temia por ele estar
sozinho dentro do curral. Os cachorros ajudavam no direcionamento do rebanho. Assim
que entravam todos, sedentos por conferir o que havia de cardápio, meu avô
fechava a porteira que dava para o pasto, reunindo-os no curral, onde passariam
a noite. Terminada a tarefa, ele parava uns instantes tecendo alguma reflexão
muda e corriqueira, atravessava a porteira e lá seguíamos de volta para casa,
pela trilha do caminho reto, passando pelas jaqueiras: os cachorros, meu avô e
eu.
Quanto tempo
mais duraria? Por não saber, eu tratava de viver desesperadamente, no intento
de guardar um pouco do meu avô e dos seus ensinamentos mais sábios acerca da
vida.
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Deisiane
Barbosa é arte
educadora na Casa de Barro, onde trabalha a Escrita Criativa ligada à Educação
Patrimonial. Graduanda em Artes Visuais pela UFRB, realiza produções artísticas
em performance, videoarte e fotografia, sempre associadas a criações da
Literatura. Atualmente pesquisa a carta como um gênero literário expresso em
meios visuais como a arte postal.
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