Finalização da etapa com educadores

Nesta primeira etapa encerrada aqui, o Dedinho de Prosa, Cadinho de Memória trabalhou com educadores na criação de memórias literárias e crônicas. Abaixo seguem textos belíssimos, engraçados, reflexivos, ricos nos retratos que fiazem de memórias, saberes e percepções. Apreciem e comentem.

Após esta etapa, seguiremos o trabalho com crianças trabalhando o gênero poesia. Aguardem!

Naquela madrugada



por Jhoilson Fiúza

Era madrugada, o dia mal começara. Mas lá estava eu, na Ponte Dom Pedro, retornando para casa. Depois de mais uma noite de trabalho, estava tão exausto, que mal conseguia pensar. Os meus olhos entreabertos parecia que iriam se fechar a qualquer momento. Só imaginava a minha cama, os meus cobertores quentinhos e a minha meia da sorte. Nunca havia desejado tanto chegar em casa como naquele dia, tomar aquele café quentinho e desabar na cama. 
Aquele trajeto que eu fazia há anos parecia maior justamente naquela madrugada. Em compensação a natureza dava um espetáculo. No meio da ponte, entre São Félix e Cachoeira, resolvi parar e admirar o rio Paraguaçu.  A sua beleza particular me roubou a atenção naquele instante. Não que nos outros dias eu não me encantasse, mas era a correria do dia a dia que me impedia de admirá-lo. O sol, ainda tímido, começava a aparecer. Seus primeiros raios tocavam às águas do velho Paraguaçu e refletia um brilho sem igual. Pensei comigo mesmo: onde estava todo esse tempo que não o vi? Em seguida, me veio um peso na consciência. Os nossos dejetos, aos poucos, roubavam aquele brilho e matava aquilo que nos fazia ser cachoeiranos.
 Continuei a caminhar. As ruas estavam desertas! Apenas alguns animais que de lá pra cá reviravam o lixo, quebravam o silêncio. Logo me lembrei daquela notícia que havia assistido na TV pela manhã: a cidade estava cada vez mais violenta! Então apressei meus passos, a sensação de medo havia me tomado. Queria logo chegar em casa! Após alguns minutos avistei-a. A feira que passa em frente a ela já estava em pleno vapor. Entre verduras e legumes, entre uma barraca e outra, cheguei em casa. Mas antes de abrir o portão, avistei um garoto, de pé, próximo a mim. Aparentava ter doze anos, talvez menos, pois o seu corpo franzino não me dava tanta certeza. Nem deu tempo perguntar o seu nome, quando ele me disse:
– Comprar laranja dotô, ainda uma de quebra pro senhor. Laranja da boa!
O que fazia um garoto daquela idade tão cedo na rua? Questionei-me. Só naquela madruga percebi que ele era apenas mais um entre tantos na feira, carregando carrinhos de mão e vendendo laranjas. Existiam muitos outros garotos sem nomes, desconhecidos pela nossa correria. Ah, triste sina, pois esses garotos nem tinham o direito de dormir. A cidade heroica já não era como antes, como no tempo dos meus avós...



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Jhoilson Fiúza é acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES); e Professor de redação pela Prefeitura Municipal de Muritiba, Bahia.

Memórias de meu avô e eu

por Deisiane Barbosa

Meu avô talvez tenha sido o único a dar trelas para as minhas bobagens. Era o único que partilhava com naturalidade das minhas observações de miudezas inúteis, que entendia o meu apreço por objetos antigos e não criticava a pintura dos meus móveis em tom Frida Kahlo. Há muitas histórias que eu poderia contar acerca de mim e meu avô. E será que tais memórias não são mais dele que minhas? Diria talvez que, de certo modo são nossas, tramaram-se por uma convivência que para a minha felicidade existiu.
Vovô me convidava a sentar à mesa com ele na hora do almoço e comprava briga com quem tentasse me reprimir pelos meus cabelos soltos e molhados e o meu vestido novo em pleno meado de semana. Dava-me uma liberdade que não passava de um mimo sutil e saudável – não vejo hoje em minha personalidade sinais de estrago pelos afagos de meu avô, que para muitos poderia significar dengos prejudiciais. Talvez ele entendesse a importância para mim da pequena vaidade de ter solto o cabelo volumoso e de ter o vestido novo, violado num “indigno dia de semana. Talvez meu avô, por mais antigo que fosse, era despido dos preconceitos mais tolos sem nem mesmo pressentir tal proeza – embora nutrisse alguns outros, os quais nunca deixei de perdoar, pois afinal, bem no fundo eu imaginava que ele aceitasse e respeitasse determinadas coisas.
Na venda de vovô eu sempre tinha vez. Percorria a prateleira de doces com a pontaria do meu dedo fino até que ele acertasse a minha predileção e atendesse ao meu humilde pedido de um docinho só. Às vezes entrávamos naquele jogo em que ele percorria de uma em uma as vasilhas e eu ia respondendo com nãos até que ele chegasse ao doce que eu queria.
Ainda criança, não somos inteiramente conscientes do valor das coisas, mas entender nem sempre é o importante de tudo – como já disse uma escritora que muito aprecio –, viver é que é acima de tudo o mais valoroso. Na infância vivemos, alvoroçados, sem nem nos dar conta da dimensão das coisas; à medida que crescemos, vamos ganhando a capacidade de enxergá-las com os olhos precavidos para as eventuais brevidades, ávidos em querer guardar os momentos, registrar a beleza efêmera das coisas que amamos.
Eu já tinha um pouco dessa malícia quando meu avô fez a sua segunda cirurgia na próstata. Retornando vagarosamente às suas atividades cotidianas na roça, precisava ainda de ajuda nas ações que exigiam maiores esforços. Foi então que eu fui incumbida de uma tarefa: levar o carro de mão com a comida dos bois até o curral. 
Sentava-se debaixo do pé de cacau e durante boa parte da tarde, olhando a estrada, pensando na vida, conversando e saudando um ou outro que por ali passasse, meu avô empunhava o facão cortando toda espécie de suprimento aos animais: mandioca, jaca, carambola e outros frutos da roça. A tardezinha vinha descendo e então era a hora: ele me chamava e eu largava o que estivesse fazendo. Ele pegava sua pá, eu pegava o carro de mão e os dois cachorros seguiam juntos (Jack e Tabuada). Descíamos o caminho reto, passando pela lateral da casa, pelo galinheiro, pelas mangueiras e as enormes jaqueiras e avistávamos o antigo curral. Até os cachorros adoravam aquela aventura e, muito serelepes, corriam na frente se embrenhando nos matos, avisando aos bois que tinha novidade chegando. Achava a maior graça naquilo e como já tinha a malícia do valor daqueles momentos tratava de guardar muito bem acolhidos e, sobretudo, vivê-los – que é a melhor maneira de guardar bem guardado.
Ele abria a porteira de estacas atravessadas na horizontal e eu passava com o carro de mão, estacionando-o perto dos cochos. Depois corria para fechar a porteira do pasto pros bois não entrarem antes da hora. E dali em diante a tarefa era dele novamente. Com a pá ia distribuindo os frutos e um pouco de mistura de ração. Com seu chapéu, sua camisa às vezes manchada, sua calça comprida quase sempre rasgada na barra e com toda aquela simplicidade do mundo, meu avô ia cumprindo sua tarefa muda e me ensinando naqueles minutos de silêncio coisas que nem ele nem eu mensurávamos ao certo.
Eu olhava aquilo tudo: os cachorros correndo no pasto, meu avô zelando pelo seu pequeno rebanho, o curral antigo, cheio de esterco pelo chão, eu sentido a nobreza daquela missão ao qual eu fora incumbida... quanto tempo mesmo duraria tudo aquilo? Quantas vezes mais se repetiria aquele ritual cotidiano?
Vez ou outra eu puxava conversa com meu avô, mas sentia em silêncio o quanto aquilo tudo me tomava, porém não conseguiria demonstrar o quão valioso era para mim. Ouvia-se o atrito da pá no latão do carro de mão, os cachorros latindo, ou farejando o esterco, ou bebendo água no tanque dos bois. O que será que meu avô pensava? Será que estava tão embebido quanto eu naquele silencioso contentamento? Será que também não saberia expressar a importância daquilo tudo, embora a pressentisse?
Terminada a distribuição do suprimento, ele chamava os bois de um jeito engraçado. Batia a pá no carro de mão e como se aqueles animais fossem seus velhos camaradas, anunciava:
– Ôoo ôoo, venham comer, ó! Tem coisa boa pra vocês aqui!
Já fora do curral, esperando na porteira, eu sorria do humor roceiro do meu avô. Os bois, como quem entendendo o recado, vinham na maior carreira e eu temia por ele estar sozinho dentro do curral. Os cachorros ajudavam no direcionamento do rebanho. Assim que entravam todos, sedentos por conferir o que havia de cardápio, meu avô fechava a porteira que dava para o pasto, reunindo-os no curral, onde passariam a noite. Terminada a tarefa, ele parava uns instantes tecendo alguma reflexão muda e corriqueira, atravessava a porteira e lá seguíamos de volta para casa, pela trilha do caminho reto, passando pelas jaqueiras: os cachorros, meu avô e eu.
Quanto tempo mais duraria? Por não saber, eu tratava de viver desesperadamente, no intento de guardar um pouco do meu avô e dos seus ensinamentos mais sábios acerca da vida.



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Deisiane Barbosa é arte educadora na Casa de Barro, onde trabalha a Escrita Criativa ligada à Educação Patrimonial. Graduanda em Artes Visuais pela UFRB, realiza produções artísticas em performance, videoarte e fotografia, sempre associadas a criações da Literatura. Atualmente pesquisa a carta como um gênero literário expresso em meios visuais como a arte postal.

Memórias de infância



por Eliane Araújo

Ah, meu tempo de menina... Falar dele é o mesmo que rememorar a história de quatro pessoas que em tudo e desde cedo, aprenderam a importância de compartilhar felicidades, tristezas e responsabilidades:  minha família! Meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. Unidos em tudo e acima disso, cúmplices em nossa existência. Meus pais, sempre trabalharam fora (até hoje) e eu tinha a incumbência de cuidar do meu irmão! Estudávamos sempre no mesmo turno escolar, brincávamos juntos, dentro de casa ou no quintal, pois brincar na rua era algo muito esporádico. Em alguns domingos passeávamos no Jardim (porto da Cachoeira) em companhia dos nossos pais. Ver televisão e ler era a nossa diversão. Nem sempre tínhamos dinheiro para viagens e programas que demandassem muito investimento financeiro. Mas todas as noites quando não íamos à igreja, sentávamos em família para compartilhar o nosso dia e ouvir as engraçadas histórias da infância dos meus pais e suas peripécias!  Até hoje me lembro dos relatos de meu pai sobre quando o circo chegava na cidade. Geralmente, circos pobres e sem muita infraestrutura, se instalavam com seus leões magros, que se alimentavam com os gatos da vizinhança, que eram obtidos por troca de ingressos. Palhaços sem muita graça, mas, que mexiam com o imaginário das crianças e, para além destes, toda a composição daquele lúdico acontecimento: as músicas, pipocas, correria e muita agitação.
Eu? Nunca fui num circo, mas imagino como seja, pois, meu pai contava com tanta veracidade que parecia estar passando um filme em minha frente. Essas histórias sempre vinham acompanhadas de caricaturas feitas por meu pai e que davam um tom de existência ao personagem, musiquinhas, nomes de pessoas e muita, muita alegria ao serem contadas. Posso afirmar: meu pai é um exímio contador de histórias. Minha mãe também aproveitava o momento e disparava a contar sobre a sua infância vivida na Rua Julião Gomes – lugar em que fora criada logo depois do falecimento de sua mãe, quando tinha apenas nove anos de idade. Ela e seus irmãos, mesmo trazendo marcas de uma perda tão difícil, logo na tenra idade, aproveitavam sua infância na fábrica de ladrilhos de seu tio “Manoel do ladrilho”. Corriam por entre os maquinários, subiam na areia da barra, que era a base para a fabricação do ladrilho, tomavam banho de mangueira, e quando chegavam às férias (vale ressaltar que esse é o ponto que minha mãe suspira ao falar) iam para a roça de Sr. Leonídio, em Conceição da Feira. Lá, em meio aos cavalos, vacas e galinhas brincavam até não aguentarem mais – e olha que acordavam bem cedinho para ir à casa de farinha, que se tornava o momento mais divertido das férias! Os nossos olhos neste momento já brilhavam de ver tanta alegria nas histórias contadas por eles. Mas, quando minha mãe contava das noites na roça e de todo o esplendor da lua e estrelas, eu que era menina e tão sonhadora, deixava-me flutuar, chegando ao ponto de sentir como se tivesse vivido também naquela narrativa. Hoje carrego em mim, dentre tantas, essas lembranças, pois vejo que mesmo com tantas limitações de tempo e dinheiro impostas pelos tempos atuais em que vivemos, meus pais conseguiram de algum modo, se dedicarem a mim e ao meu irmão, nos proporcionando momentos de muito amor e aprendizado. Eram noites realmente deliciosas de muitos sorrisos e lições de vida que trarei em minhas mais ternas memórias.



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Eliane Araújo é licenciada em Letras Vernáculas, graduanda em Museologia pela UFRB, pós-graduanda em Especialização em Gestão do Trabalho Pedagógico com ênfase em Coordenação Pedagógica e orientação Educacional no IAENE. Atua na área da Sociomuseologia e Educação na Casa de Barro.

Entre a crônica e a memória literária...

por Deisiane Barbosa
No encontro de hoje (05/06) fizemos uma recapitulação do que vimos acerca dos gêneros literários trabalhados. Realizamos leituras de belos textos, comentamos os seus conteúdos e as suas bases estruturais, partilhamos impressões e, por fim, após dúvidas esclarecidas, já estávamos todos mais tranquilos.
Para quem perdeu nosso encontro – o qual fora muito proveitoso – segue abaixo um breve esquema do que aconteceu.
Relembramos quais foram as atividades solicitadas no decorrer do curso e são elas:
  • Apresentação criativa de si;
  • Relatório da experiência em sala de aula a partir da aplicação de uma atividade envolvendo o conceito de Memória;
  • Criação de uma Memória Literária;
  • Plano de aula prevendo a aplicação dos conceitos de Memória e Patrimônio;
  • Crônica, cujo tema contemple algum bem patrimonial discutido nos encontros do Dedinho de Prosa;
Ouvimos o áudio e acompanhamos a leitura do texto “Restos do Carnaval” da escritora Clarice Lispector – o qual está disponível aqui no site da Revista Nova Escola. Observamos que determinado texto, mesmo não recebendo claramente a “classificação” de uma memória literária, corresponde perfeitamente a uma. Por quê?
A autora usa a voz de um narrador-personagem para se reportar ao passado e contar memórias de sua infância. Ou seja, ela narra em primeira pessoa um fato específico, o qual lhe aconteceu num carnaval muito marcante. Sabemos que Clarice passou parte da sua infância no Recife, logo, acredita-se que mesmo recebendo muitas investidas da ficção, a história pode ter sido baseada em fatos da realidade. No entanto, para atestar o caráter de memória literária, não vamos discutir se a história precisa ser verdadeira ou não; como dissemos hoje: ela pode ser baseada na realidade do autor e no ato de narrar ele pode acabar floreando um pouco o seu caráter ficcional para dar uma beleza literária em alguns pontos. Foquemos aqui no formato básico desse tipo de texto: em primeira pessoa, referente a um fato do passado do autor-narrador-personagem.
Após sanar algumas dúvidas latentes partimos para a crônica. O que seria de fato a essência da crônica? Qual seu diferencial e como, inclusive, ela se distingue da memória literária?
Antes de tudo lemos o texto “Quanto tempo?” da escritora Heloisa Seixas – disponível aqui em seu site. Percebemos como a autora construiu sua breve e singela narrativa. Primeiro ela iniciou com algumas lembranças da infância e a todo tempo traçou paralelos com narrações do presente – o que ela estava fazendo, o seu percurso, para onde estava se encaminhando. Em grande parte do texto ela traça esses parâmetros, evidenciando seu encantamento pelo mar do Arpoador, como ele ficou marcante desde a sua infância. Já quase no final a autora toca um outro ponto a partir de um algo banal – um pedaço de esparadrapo que solta-se do seu pé. Com esse redirecionamento a autora leva o texto para um rumo diferente: ela constrói um discurso ecológico sobre como estamos preservando nossos bens naturais e firma nesse discurso alguns dos seus pontos de vista. Dessa forma, percebemos que o discorrer da crônica traz algumas memórias sim, porém não se prende somente a elas – estas não são o foco principal –, ela também faz comparações com o momento presente e termina por comentar questões tão pertinentes como a preservação ambiental, faz algumas críticas sobre nossa dívida em relação a isso.
Portanto, o que define tal texto – cuja linguagem é muito bem articulada e tende muitas vezes ao lirismo – como uma crônica? A figura de um narrador-personagem, que observa o seu cotidiano, tira das suas vivências reflexões críticas, posicionamentos, pontos de vista claros; essa figura reporta-se ao passado algumas vezes para retomar acontecimentos que se somam ao presente e às discussões que ele quer levantar. O texto também é breve, curto, leve; é um texto rápido, porém, eficaz, belo.
Desse modo, vale ressaltar: uma crônica, diferente de uma memória literária, não se prende às lembranças do passado, seu foco maior é o contemporâneo, o que cerca o autor, o seu cotidiano, o que está sob seu olhar e o inquieta de alguma maneira – seja positiva ou negativamente. A crônica requer sempre o seu ponto de vista de um modo breve, conciso.
Por fim, lemos as produções textuais dos educadores presentes e traçamos alguns comentários. Observamos seus aspectos positivos e também os pontos que desfavorecem a configuração conforme o gênero textual solicitado.
Dúvidas sanadas, a aula findou e todos foram para as suas casas pulsantes em inspirações renovadas – certamente estão por vir mais belas produções textuais! Aguardemos...

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Deisiane Barbosa é arte educadora na Casa de Barro, onde trabalha a Escrita Criativa ligada à Educação Patrimonial. Graduando em Artes Visuais pela UFRB, realiza produções artísticas em performance, videoarte e fotografia, sempre associadas a criações da Literatura. Atualmente pesquisa a carta como um gênero literário expresso em meios visuais como a arte postal.

Os mistérios da crônica



por Deisiane Barbosa

Observando a etimologia da palavra crônica nos deparamos com variações do grego as quais nos remetem às noções de tempo e/ou aquilo relacionado a ele. Pouco depois o termo chronica, do latim, definiu um gênero que registrava os acontecimentos históricos, verídicos, numa sequência cronológica, sem um aprofundamento de interpretação dos fatos. Parte dessa concepção serviu para modelar o que hoje compreendermos pela crônica inserida no meio literário.
Desde a antiguidade esse gênero textual serviu para registrar acontecimentos com pessoas importantes, porém tal formato foi se alterando. Tempos depois, a partir do século XIX, a crônica se consolidou com a difusão da imprensa, mas passou também a inserir outros assuntos nas suas abordagens: começou a registrar a vida social, política, costumes e o cotidiano do seu tempo, passando também a ser publicada em revistas, jornais e folhetins. Sua escrita variava de um aspecto mais jornalístico a outro mais literário, assim vários escritores assumiram-na como um gênero literário, relatando fatos sob um ponto de vista pessoal, no objetivo de atingir a sensibilidade do público leitor.
Atualmente as crônicas se interessam pelas transformações sociais e pela valorização da história social, descentraliza de figuras ilustres e parte para a observação do corriqueiro. Afinal, o que pode ser tema numa crônica? Absolutamente tudo, pois sua matéria-prima básica são fatos ocorridos no dia-a-dia: o preço do tomate, as elevações de temperatura, as ondas de violência, os festejos tradicionais, nossa memória, a memória dos lugares onde vivemos, os hábitos da juventude; absolutamente tudo, desde coisas que apenas presenciamos a coisas que acontecem conosco, em nosso trabalho, dentro de casa, ou que vimos passar no telejornal. A matéria para a crônica está em todo lugar, basta que articulemos nossa escrita a fim de registrá-la de maneira criativa. E como fazer isso? É muito difícil? Qual a estrutura de uma crônica?
A crônica tem suas peculiaridades formais, algumas delas refere-se à mescla de essências da linguagem escrita e da oralidade; é breve, leve, de fácil acesso e envolvente; concentra uma leitura agradável, uma vez que o leitor quase sempre interage com os acontecimentos narrados; deve ser um texto curto e de linguagem simples, próxima a vários tipos de leitores, de várias faixas etárias. 
Acredita-se que ela ainda possa variar entre tipos diversos, ocorrendo também a mistura de vários tipos num só texto. Cada um desses tipos tem suas particularidades, numa crônica lírica, por exemplo, o autor relata com mais nostalgia e sentimentalismo; numa humorística faz graça com o cotidiano; numa crônica-ensaio o cronista, ironicamente, tece uma crítica ao que acontece nas relações sociais e de poder; na filosófica ele faz uma reflexão de um fato ou evento; na jornalística o autor apresenta aspectos particulares de notícias ou fatos e a crônica ainda pode variar entre policial, esportiva, política, etc.
Sua aparência é simples, seu assunto pode ser banal, mas sua essência é extremamente rica, a maneira como se constrói a estrutura requer sensibilidade e concisão. Mas afinal, como se constrói uma crônica, como se começa, como se procede?
nº1: escolha um acontecimento que lhe chame a atenção. Você deve conhecer bem o assunto e ele deve lhe causar sensações (horror, medo, entusiasmo, tristeza...), pois a partir delas será mais fácil expressar-se por escrito.
nº2: Formule opiniões sobre tal fato. Liste as ideias antes de começar a crônica propriamente dita. Explicite o seu ponto de vista, sua uma visão pessoal de um evento.
nº3: Defina o tipo de crônica que se pretende escrever (narrativo, jornalístico, descritivo, entre outras) e pense quais ferramentas utilizar para configurar o seu texto de acordo com essa tipologia.
nº4: Inicie a crônica abordando o tema a ser desenvolvido. Faz-se importante clareza para que fique subentendido ao leitor sobre o que será comentado no decorrer do texto, tendo a cautela para que sua introdução não se torne um pequeno resumo da sua crônica.
nº5: Seja conciso. Uma boa introdução não deve ser necessariamente longa. Ao contrário, a mesma pode ser muitas vezes feita com apenas um parágrafo. O ideal é escrever períodos curtos, a fim de não tornar cansativa a leitura, tornando-a desagradável e cansativa.
nº6: A parte introdutória nunca deve fazer desvios do assunto principal. Evite fazer rodeios com as palavras. Foco é essencial para que todo o restante do texto seja coerente. Uma crônica é curta e ela precisa ser objetiva na medida certa.
Por fim, recomenda-se escrever diariamente, pois tal hábito faz-se a maneira ideal de se tornar um bom escritor não só de crônicas, mas também de outros gêneros textuais. Beneficiará, sobretudo, sua comunicação e expressão por via escrita.
Outras dicas importantes são: uma crônica não deve ter muitos personagens (a depender do estilo, às vezes nem personagens tem); é bom que se evite fantasiar demais, lembre-se da objetividade necessária; expresse sua opinião; uma crônica é rápida e curta. Depois que terminou, revise! Deixe o texto descansar, depois volte, releia, procure identificar os erros que tenha passado despercebidos no ato de escrita.

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Deisiane Barbosa é arte educadora na Casa de Barro, onde trabalha a Escrita Criativa ligada à Educação Patrimonial. Graduando em Artes Visuais pela UFRB, realiza produções artísticas em performance, videoarte e fotografia, sempre associadas a criações da Literatura. Atualmente pesquisa a carta como um gênero literário expresso em meios visuais como a arte postal.