A fabricação de Memórias Literárias


Florescem os primeiros textos literários, cuja essência concentra as memórias literárias dos nossos participantes da oficina de escrita criativa do Dedinho de Prosa, Cadinho de Memória para educadores. Aprecie, reflita, comente e mande também o seu texto!

A moça e o pintor



por Maria Dayube Sales

Um encontro, como tantos outros, marca o início dessa história de uma jovem de dezessete anos; ele um jovem rapaz já bem encaminhado, com sonhos e muitos objetivos traçados – a determinação era marca na sua trajetória.
Diz o ditado que “os opostos se atraem’’, se isso é verdadeiro o encontro desses dois é uma prova real, pois à primeira vista são polos totalmente diferentes. Ele é razão, ela emoção, ele lua, ela sol. Ele é inverno, ela verão, ele noite, ela dia. Mas foi desse jeito que o pintor de alma livre e ideias modernas, se encantou por aquela mocinha de comportamento pacato e singelo e apaixonada por MPB. Ele se declarou por meio de uma bela carta o seu desejo de caminhar lado a lado com ela, o que a deixou muito assustada, pois não se percebia como alguém capaz de roubar o coração de um ser tão irreverente.
Seu primeiro ato foi recusar a proposta de formar uma dupla tão adversa. Como dançar rock gostando de músicas que falavam do coração? Como juntar dois astros tão diferentes como o sol e a lua? O pintor, como todo artista, estava determinado a conquistar aquela que seria a outra parte da tela do seu autorretrato, aquela que segundo ele seria sua outra metade.
Após idas e vindas e muitas opiniões, a sorte foi lançada e a moça resolveu se arriscar naquela história que para muitos, não tardaria em se tornar uma tela de paisagem morta, descolorida pelo tempo. Enquanto isso, o pintor usava todo seu arsenal de tons e cores para conquistar aquele coração. Esforços não foram poupados para que pudesse provar que quando se encontra a alma gêmea é preciso acreditar. Assim, a moça começou a encantar-se com toda aquela luz que ele trazia consigo e a contagiava como o brilho das estrelas e aos poucos foi despindo aquela imagem de pintor introspectivo, onde somente telas, tintas e sons distorcidos conseguiam penetrar. Ela, com seu jeito doce, trouxe à tona todas as tonalidades de alegria e vibração que estavam guardadas a sete chaves.
Então já não eram dois, mas uma dupla que unida passou a pintar o mais belo retrato já visto. Juntos pintaram uma linda tela cheia de cores e formas, as quais representavam cada etapa deste amor que, de impossível tornou-se visível, superando as suas diferenças, tornando possível a união de dois astros que se completam, iluminando-se e aquecendo-se mutuamente. Em dias de sol ou chuva, nas quatro estações do ano, juntos, em perfeita união.




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Maria Dayube Sales é Pedagoga, já foi professora do ensino fundamental e educação infantil, trabalha no Colégio S. S. Sacramento há 25 anos e hoje atua como Coordenadora dos dois níveis de ensino.

Memórias a bordo



por Jhoilson Fiúza

Já era noite, não sabia ao certo que horas, mas a lua estava lá, imponente, no seu ponto mais alto.  A mesma lua que por séculos orientou navegações, inspirou poetas e encontros apaixonados, agora levava o meu povo ao encontro do seu algoz. Ao olhar pela janela do porão sujo e escuro, minha terra ficava cada vez mais distante, ao ponto de sumir completamente dos meus olhos e a sua imagem da minha mente. Não sabia para onde estávamos indo e muito menos o que nos esperavam ao longo do Atlântico. Entre tantas incertezas, percebi que o nosso regresso era incerto. Talvez nunca mais voltássemos!
Éramos algumas centenas, talvez milhares. O céu estava tão repleto de estrelas quanto o navio de pessoas. Contar?! Era uma tarefa difícil, pois eles não cabiam nos dedos das minhas mãos.  Fui insistente, mas também não cabiam nos dedos dos meus pés. Tentei contar com os dedos da minha mãe, nada adiantou. “Quanta gente...”, pensei comigo mesmo. Diferentes povos estavam ali, formando um verdadeiro caleidoscópio cultural. Não eram apenas negros da África, eram negros de Kêtu e de Angola, eram negros da cultura Nagô, Yorubá, JeJe e Bantos. Era um verdadeiro encontro entre culturas, pena que não tínhamos motivos algum para festejar, como sempre fazíamos.
Para falar a verdade, nem sabia por que estávamos ali. Perguntei a minha mãe “Será que fizemos algo de errado?”. Ela apenas me olhou e balançou a cabeça em sinal de negação. Não, não tínhamos feito nada de errado. Éramos apenas negros e isso bastava!
 Num vai e vem ritmado do mar, a viagem parecia interminável. Muitos já não estavam entre nós. Não éramos hospedes naquela embarcação, nem mesmo vistos como humanos. Éramos apenas mercadorias, cargas a serem vendidas num lugar, que todos no convés chamavam de Brasil. Que país era aquele que comprava homens, mulheres e crianças? Que lugar era aquele que separava famílias, que roubava alegrias e apagava sorrisos? Não sabia!
Em uma das muitas noites turbulentas e angustiantes, acordei ofegante. Meu choro podia ser ouvido nos dois lados do Atlântico. O medo havia sufocado meus sonhos, corrompido minhas memórias e aos poucos matava meu espírito. Podia sentir meu coração pulsar com força, gritar por liberdade e transbordar de medos.
Minha mãe veio ao meu encontro e me acalentou em seus braços. De repente, ela arrancou um pedaço de sua saia e amarrou as extremidades. Em poucos minutos aquele pano sujo e velho deu forma a uma boneca, a qual meu povo chamava de Abayomi, nosso bem precioso. Sem dizer nenhuma palavra ela me entregou aquele pequeno objeto. Meus olhos estavam radiantes, pois minha mãe foi capaz de oferecer o melhor, mesmo diante daquela situação rumo ao cativeiro.
Meus medos de repente sumiram. Senti uma enorme força envolver não apenas meu corpo magro, mas preencher meu espírito, que havia sido violado pelo medo. Esse clima de carinho foi quebrado por um burburinho lá em cima. O capitão gritou em alto e bom tom “Preparem-se para o desembarque!”  
Depois de meses em alto mar, se aproximava o momento de atracar. Sabia que aquele seria o início de muitos sofrimentos, mas poderia suportar ao lado da minha mãe. Segurei firme em sua mão, também queria protegê-la. Já estávamos próximo do convés quando a luz do sol tocou meu rosto. Por alguns instantes me senti livre novamente. Mas os grilhões logo foram colocados para sufocar esse sentimento.  Antes mesmo de pisar em terra firme e seguir para a casa grande, olhei para o céu e disse “que nossos deuses nos ajudem...”. 



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Jhoilson Fiúza é acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES); e Professor de redação pela Prefeitura Municipal de Muritiba, Bahia.

Experiências em classe - alguns relatos


Nos encontros seguintes do Dedinho de Prosa, Cadinho de Memória houve muitas discussões sobre Memória e Cultura. Os educadores foram provocados a também levar tais discussões para as suas respectivas salas de aula. A atividade sugerida foi a mesma realizada na oficina com os professores: pedir que cada aluno levasse uma foto ou objeto que lembrasse alguma memória da infância, em seguida, numa roda de conversa cada com a turma lembranças. Os professores registraram a experiência em relatos, os quais seguem em postagens abaixo.

As idéias de Memória e Cultura

– relato de experiência em sala de aula –
por Hilda Souza
Como já dizia FREIRE: “saber ensinar não é transmitir conhecimentos, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. O educador deve desafiar o educando e produzir sua compreensão a partir do que vem sendo comunicado e é na escola onde o aluno recria a sua memória.
Dentro de um estudo sobre a cultura local onde vivem, realizei nas duas instituições onde leciono (Colégio Santíssimo Sacramento e o Centro Educacional Batista) a atividade sugerida nos encontros do Dedinho de Prosa, Cadinho de Memória: o compartilhamento com meus alunos das idéias de cultura e memória das suas infâncias.
O tempo é sábio e vai mostrando os verdadeiros caminhos que devemos seguir, basta que tenhamos abertura e sensibilidade para compreender a sua linguagem: a experiência foi a melhor possível. Vou começar pelo Centro Educacional Batista, onde os alunos me surpreenderam muito, trazendo fotos que relembravam a infância, como no batismo, nascimento, primeiro aniversário, primeiro desfile e etc.
Se eu pudesse escreveria todos os relatos, mas deixarei aqui expresso relatos de alguns que me chamaram muito a atenção.
Os gêmeos Fábio e Flávio, por incrível que pareça, trouxeram a mesma foto onde ambos estão no velotror fazendo horrores em casa – a turma caiu em gargalhadas chamando os dois de “irmãos metralha”.
Veio também a foto do aluno Diego, que aos 3 anos derrubou um vaso na casa de sua tia, colocando a culpa no seu primo, o qual acabou apanhando em seu lugar – continuaram os risos.
O relato de Luís Felipe também chamou atenção quando ele apresentou sua foto aos 4 anos, indo pela primeira vez ao zoológico em São Paulo, ele empurrou a prima dentro do poço do hipopótamo (maldoso, não é mesmo?). Peraltices que eles não esqueceram...
Além de muitos outros relatos, houve o da aluna Jasmine, que trouxe sua foto aos 4 anos quando, brincando de correr no velotror, a mãe a reclamou e ela não obedeceu e aí, já viu né? Caiu, quebrou o queixo e no dia seguinte ainda tirou a foto de princesa com o queixo quebrado, sem contar na surra que tomou.
Levantou-se também uma grande polêmica quando a aluna Camile nos mostrou a foto dela com meses de vida, no carrinho, tomando Danone e por um deslize da mãe, ela viu sua filha no chão. Engraçado e ao mesmo tempo triste, questionaram “porque ela deixou a filha sozinha?”, “a culpa era da mãe?” etc. Foi uma polêmica danada.
No Colégio Santíssimo Sacramento foi que a diversidade das lembranças chamou atenção e produziu encantamento – até porque é uma turma grande, com 32 alunos.  Houve cada objeto mais interessante que outro, mas tentarei resumir pelo menos naquelas que me chamaram mais atenção.
A aluna Gabriela apresentou uma foto de quando era criança, aos 2 anos de idade, com o vestido que o bisavô a deu e também levou o próprio vestido ao vivo e a cores que tem até hoje.
Outro aluno trouxe o cabide que ganhou quando bebê da avó, o qual existe até hoje no seu guarda-roupa e quando ele o abre só lembra da sua  infância.
Outra muito interessante foi a foto da aluna Elizabeth, onde ela e o irmão estavam brincando de selva, na sua primeira casa em Sergipe, e o pai pintou a ambos (ele como tigre e ela de zebra) – a  turma  caiu na risada. A menina também trouxe a camisa com o desenho de um carneirinho que ela tem desde pequena e nunca deixou a mãe dar ou jogar fora, ela lembra também que bastava cantar a música da “ciranda, cirandinha” e ela dormia.
Foram fotos e mais fotos, vestidos, roupas, bandas de música com baldes da mãe, livros, crochê, cachorros que foram ganhos juntos com roupas, dado, pincel... Foram muitos, porém dois chamaram muito a minha atenção e a da turma: o aluno Guilherme levou dois dentinhos de leite; contou que sua vizinha era única pessoa quem ele deixava arrancá-los. Todos ficaram abismados.
Chamou-nos atenção que mesmo com fotos de entes queridos que já faleceram houve tantas manifestações alegres, porém a aluna Luize Barreto trouxe várias fotos suas internada, com pneumonia, no hospital Santa Izabel, junto a uma coleguinha que conheceu lá. Todos ficaram tristes junto da aluna. Ela também mostrou o vestido que ganhou do pai aos seus 2 anos, para ir ao shopping ver o papai Noel. Logo que o conheceu ficou com medo dele, foi para casa, mas não quis mais ver o vestido que a lembrava a ocasião no shopping.
E assim concluo meu relato com a certeza de que: precisamos de uma pedagogia da alegria que estimule as capacidades criativas do aluno e transforme a educação numa festa. Se Deus nos criou por amor, Ele quer que vivamos todos felizes com relações fraternais. Uma felicidade que se traduz em compromisso de entrega, a sonhar e a buscar um modo que possibilite a todos a autêntica alegria brotada do serviço, da justiça, do amor e da verdadeira PAZ.
Ser professor é oferecer asas às crianças para que possam voar com sua fantasia, percorrer os caminhos da imaginação, visitar estrelas e países encantados, falar com as mariposas e trupiais, descobrir horizontes insuspeitados e descansar no peito da lua.
Estimulemos nossos alunos à capacidade de crer e criar para que nunca se deixem aprisionar pela mediocridade rasteira, sem alma, do materialismo que nos domina e esmaga e que não nos deixa sonhar.
                                                     Abraços, Pró Hilda Souza.


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Hilda Souza é educadora que toca na alma de alunos do Centro Educacional Batista Betel e do Colégio Santíssimo Sacramento com muita dedicação e poesia.