Aula 1: O que é Memória? Para que serve?

por Eliane Araújo
“A memória não é um instrumento para a exploração do passado, é antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio sutil no qual as antigas cidades estão soterradas”.
(Walter BENJAMIM, 2014)

Partindo do pressuposto de que as relações com o passado são variadas, já que nem todos compartilham dele as mesmas representações, entendendo o ato de preservar a memória  como um instrumento de cidadania, um ato político e transformador, que proporciona a apropriação plena do bem pelo sujeito, na exploração de todo o seu potencial e promovendo a sua integração entre o bem entendendo os valores que atribuímos aos bens são relativos, pois além das influências diretas das memórias e do modo  que nos identificamos e nos apegamos a elas, estes valores também podem variar de acordo com interesses pessoais, políticos-ideológicos e financeiros. Se entendermos, que o que sabemos de nós mesmos e do mundo nos vem do passado, chegaremos à conclusão de que é nesse passado que buscamos as memórias que nos mantêm vivos, que nos identificam culturalmente.
Quando nos propomos a preservar um bem patrimonial é porque admitimos haver alguma ameaça à continuidade da sua existência, que consideramos significativa; essa importância pode estar diretamente ligada à nossa vida, às nossas memórias, ou estar relacionada a outro grupo de pessoas. Talvez seja por isso que, desde o início dos tempos, ouvimos falar da preocupação dos homens com a guarda de objetos que possuíam alguma importância para eles, seja pela sua funcionalidade ou mesmo pelo simbolismo que podiam representar.  Essa vontade de guardar estaria relacionada com o desejo de reter, de não perder lembranças que de alguma maneira pudessem dar algum significado a sua existência. Pensando desta forma, pode se considerar que esses objetos já eram depositários da história desses homens; de seus hábitos e informações culturais, e já serviam de suporte para suas memórias. Da mesma maneira, pode se avaliar que esses objetos guardados e, portanto, considerados “bens”, já possuíam uma acepção aproximada do que hoje chamamos de patrimônio. 
Nesse sentido, desde a antiguidade até os dias atuais, podemos observar a prática de diferentes processos de representação do passado, que ocorrem em tentativas de reafirmar, no presente, laços que consideramos importantes, ou seja, com o propósito de resgatar vínculos de nossa identidade. Uma destas práticas se traduz na reivindicação patrimonial, atualmente também em crescente “proliferação”, pela valorização de bens culturais a partir de valores de percepção que lhe são atribuídos. O conceito de patrimônio e os valores a ele atribuídos evoluíram ao longo da história da humanidade, mas a sua relação com a memória e a identidade sempre persistiu, tornando-se cada vez mais forte e íntima, chegando à atualidade com uma necessidade absoluta de manutenção desses laços. 
Aproximar os jovens das heranças culturais deixadas pelas gerações anteriores e envolve-los a ponto de sentirem-se parte da comunidade que estão inseridos é o que vai caracterizar uma “experiência humanizadora”, pois uma pessoa sem memória não tem identidade. O próprio conceito “de quem sou eu” depende da minha história, pois somos frutos dela! Eis então o desafio... moldar o jovem à sua identidade Cultural. É de suma importância fazê-lo; entender que a memória preservada, os dados do presente, o entendimento das transformações e a busca de um novo fazer, não significarão uma aceitação submissa e passiva dos valores do passado, mas sim o reconhecimento de que estão ali os elementos básicos para a conservação da nossa identidade cultural e que valorizar a memória de seu povo, não configura sua assimilação de forma nostálgica, mas esse ato vai reafirmar a sua postura enquanto um sujeito que analisa criticamente, que recria e constrói a partir de um referencial.
Refletindo sobre os aspectos supracitados surge a indagação “que relação se pode, então, estabelecer entre a memória e a construção de uma identidade cultural?”. Segundo um dos maiores estudiosos da cultura material, o brasileiro Ulpiano Bezerra de Meneses (1984, p. 33), a memória, como suporte fundamental da identidade, “é mecanismo de retenção de informação, conhecimento, experiência individual ou social, constituindo-se em um eixo de atribuições que articula, categoriza os aspectos multiformes de realidade, dando-lhes lógica e inteligibilidade”. Assim, nos conhecemos e reconhecemos por meio dessas percepções e lembranças, dos registros que fazemos de fatos passados, de objetos e coisas que nos são caras, que nos identificam socialmente.
A partir das reflexões sobre o poder da memória como fonte de ligação social, podemos afirmar que esta integra o presente ao passado e projeta o futuro, “situa”, proporciona reconhecimento, reencontro, significado, sentido. É ela que nos alimenta com as informações vitais que nos ancoram à vida. Podemos dizer que possuímos a faculdade da memória – ou do esquecimento – mas continuamos “reféns” da memória. Por isso, ela permanece na contemporaneidade tão subjetiva e, ao mesmo tempo, tão fundamental a nossa identidade e a nossa sobrevivência.

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Eliane Araújo é licenciada em Letras Vernáculas, graduanda em Museologia pela UFRB, pós-graduanda em Especialização em Gestão do Trabalho Pedagógico com ênfase em Coordenação Pedagógica e orientação Educacional no IAENE. Atua na área da Sociomuseologia e Educação na Casa de Barro.


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